Camadas do consumo da vida privada estão cada vez mais complexa e com sentidos perdidos
Nos últimos dias, estive estudando (novamente e sempre mais) sobre celebridades e vida privada. Deparei-me com a seguinte afirmação de um autor: a posição mais salvífica para superar a mediocridade mediática é a paradoxal e própria desbanalização. Imediatamente me veio à cabeça uma conversa que temos com recorrência em nosso grupinho: você assistiria alguém lavando louça (como conteúdo)?
Como pesquisadora e consumidora, acompanho inúmeras celebridades. Dentre elas, várias passaram a compartilhar cada vez mais conteúdos ligados à sua vida doméstica, de natureza privada e íntima.
Especificamente, entre junho e julho de 2023, assisti ao artista sul-coreano Jungkook cozinhar, lavar a louça, lavar e dobrar roupa íntima, assistir TV/YouTube, cantar, malhar em casa, dormir e acordar. Isso aconteceu na plataforma Weverse, destinada a fãs de grupos e artistas sul-coreanos.
O conteúdo é disponibilizado globalmente e oferece opções de tradução, uma vez que a enorme maioria do material é publicada em coreano/hangul, japonês, mandarim e inglês. No caso das transmissões ao vivo de Jungkook, assisti em horários variados, considerando o fuso-horário de 12h para a Coreia do Sul, em áudio nativo (ou seja, sem entender nada já que não falo coreano), dependendo de outras pessoas fazerem a tradução em outra rede social, e realizando outras atividades, já que a minha vida não para em função disso (infelizmente).
Quando comento sobre isso com minhas amigas, também pesquisadoras, o estranhamento e a curiosidade sobre isso aparecerem. Por exemplo, em uma das ocasiões, o rapaz dizia que estava com sono, não conseguia dormir, então resolveu iniciar uma live para conversar com seus fãs. Nesse intervalo curto de tempo, falou algumas poucas coisas e acumulou mais de 7 milhões de usuários conectados à sua transmissão. Esse foi o público que o assistiu cochilar por mais de 20 minutos até que a empresa responsável pelo artista encerrasse o vídeo remotamente.
Durante a pandemia, principalmente, conteúdo sobre a vida doméstica e feitos nesse ambiente aumentaram bastante. Pelo público e pelos produtores estarem “confinados” nesses ambientes, parece que foi propício para isso. Vários influenciadores digitais surgiram nesse contexto e com esse tipo de produto. Faz sentido quando falamos em microcelebridades instantâneas, fruto do efêmero, e que se aproximam cada vez mais de um conteúdo que aparentemente qualquer um de nós poderia criar.
Descobri, pesquisando, que já há uma categoria para cada uma dessas atividades banais dentro da produção de conteúdo para mídias digitais. Por exemplo, as transmissões de sono estão com os “sleep streamers”. Há também quem cozinhe, limpe a casa, passe roupa, tal como fazer os streamers de jogos.
Para mim, olhando para os tópicos que estudo, o que chama a atenção é celebridades já consolidadas, com alcance amplo, seja na mídia tradicional ou na virtual, compartilharem esse tipo de conteúdo também. Se em outros momentos você tem a invasão da privacidade, agora temos uma exposição parcial e “voluntária” de coisas que eram mais difíceis de ter acesso.
Entrar na casa de pessoas famosas é quadro fixo de programas de tv e de revistas do segmento há décadas. Agora, temos um levante de programas semelhantes ressurgindo em canais no YouTube e na twitch, por exemplo, além das próprias celebridades mostrarem a seus fãs partes do seu dia que antes eram reservadas a ocasiões especiais ou a revelações muito exclusivas na mídia.
Claro que temos que levar contexto, valores culturais, avanços e barreiras tecnológicas, bem como a forma como a relação parassocial é construída. Mas é curiosa a impressão de proximidade oferecida, seja por famosos ou (ainda) desconhecidos, e que a “banalidade” seja hipervalorizada. É possível que em breve passemos pelo processo de rebanalização do banal?

